quarta-feira, 7 de setembro de 2016

"Eu escrevia silêncios, noites, anotava
 o inexprimível. Fixava vertigens."
Arthur Rimbaud


É verdade. Escrevi isso tudo aqui sim. E eu também não sei caracterizar esse manuscrito. Se foi uma narração... se foi um diálogo comigo mesmo... ou um diálogo com o fim. Me acusem, me vendam, me comprem... enfim... cubram-me de rótulos. Digam que eu não tentei ou que eu acabei tentando. Agora, nada disso mais importa. As opiniões alheias que se embriagavam nos meus calcanhares não me interessam, bem como já não vinha me interessando. Serviram somente para encrostarem a minha lápide. Se foi bem aqui que cheguei, e somente aqui que falei acerca desse assunto, é porque algo também não foi muito bem. 

Nunca fui uma pessoa que sou. Minha vida sempre foi rápida demais para ser quem eu era. E curta demais para ser quem eu queria ser. Perambulava entre os vazios que sambavam essa dúvida há muito. Ainda sentia o líquido amniótico jorrando em minhas entranhas e interrompendo os 15 dias que na verdade se traduziam apenas como dois de março. Desde então me tornei alcoólatra da existência pálida. Mesmo amando a morte, condenei-me a vida! Infelizmente! E eis que aqui desatinei os meus devaneios. Bordados de nostalgia e encravados nos gemidos que vagueavam entre os desejos roxo-incoerentes de uma manhã sensual. Um momento quente e úmido no inverno que pleiteava um ar seco... como uma crisálida de sangue, sob tutela da lua adjacente. Em meio ao alarde, foi essa a minha fantasia.

De certa forma, sempre quis testar os desafios, testar as possibilidades de mortes inerentes aos corpos nus. Já que as pessoas que eu amei, isto é, conjugalmente, nunca devem ter me amado, preferi ser odiado. Fui dispensado desse desprazer que é o amor, na maior parte de minha vida. Poucas são as horas que me lembro ter vivenciado esse veneno que pende das flechas de cupidos transeuntes. E nessas horas, eu estava bêbado demais para poder me lembrar. O Álcool era um universo imenso para a minha compreensão. Pois eu encontrava várias formas de explorá-lo.

E eu que disse que nunca iria sentir isso novamente, me encontrei em uma certa vez, mesmo após ter dito isso, embriagado pelo cheiro desse sentimento. Eu que não acreditava - ou não queria mais acreditar - talvez por medo ou por vaidade, encontrei-me rendido pelo meu próprio desejo. Surpreendido com meu próprio acaso. Na turbulência intolerante que minha vida se tornou, mesmo repleta de possibilidades de fim, de “descontinuidade”, de finalmente chegar ao balanço final... ainda consegui fixar meus olhares, confesso que olhares quebradiços, em um ponto distante no horizonte, quase a se fundir naquela paisagem desértica. Nessa paisagem árida e escatológica, em um repente frenético, surgiu a clavícula de um oásis. A visão que tive era arrebatadora. Como se a paisagem morta, intermediasse a função de caixa torácica dessa clavícula. Era um Éden envenenado de liberdade. Entre as pálpebras do deserto, era possível antever uma alcatéia de anjos e demônios, sorrindo línguas dançantes que se propagavam.

Admito que desejei que essa sensação que fluía na minha imaginação, perdurasse pelo restante dessa infinita eternidade, a qual foi me imposta. Mas desejei isso como coincidência da vontade do evento gerador. E não como protagonista.

Sim. As coisas mudam. Basta estarmos em outro ângulo para podermos prefigurar outro ponto de vista. Percebi a individualidade de um mesmo sentido por diferentes protótipos de transeuntes. Entretanto, ainda sim era possível verificar semelhanças em cada uma das, supostas, diferentes formas de sentir. E curioso é o fato de que essas diferenças sejam portadoras de uma tendência quase que mística de se harmonizar. Muitos dispositivos responsáveis pelo sentir eram também responsáveis pela semelhança desses. Mas não o sentimento em si. Percebi que o que ocorria era a influencia de outros valores em alguns dispositivos, como por exemplo: auto-afirmação, possessão, competição, imposição, dentre outros.

Essa foi a sensação. Talvez a última tão forte quanto. A paz que esquartejava as contendas de minha mente, borrava uma nodoa contendo morfina em sua composição. Nunca tinha visto e muito menos vivenciado uma paz tão forte que chegava a doer de prazer. A vida não se resumia apenas no fato de estar vivo. E sim muito além disso. Afinal não era possível resumir a vida com uma ou duas palavras... ou talvez em um dicionário. A vida tornou-se mais forte que a atração que eu sentia pelo fim. A vida era bem maior que a vivencia. Não havia nada mais brilhante como em outrora. Apenas uma palidez sensual e convidativa ciscava entre meus pensamentos roxo-incoerentes. Aquele antagonismo que perseguia a humanidade, que se refere a vida como complexa ou simples, estava resolvido. A vida era tão simples, mas tão simples... que fugia da capacidade das faculdades pensantes do homem. Daí, provinha a sua complexidade. (para o homem). Pois o homem não estava acostumado com tanta simplicidade. A vida era uma pedra pequena demais para ser vista do alto. Eis aí o ponto onde o homem tropeça. Nessa partícula que é rotulada de vida.

Desde a época em que minha única amiga era a infância acostumei-me com a grandeza. À grandes vitórias e grandes derrotas. Cada dia transcorrido sob testemunha de minha vivencia, trazia  em suas asas, aqueles vento impregnado de cheiro de morte. A morte tornou-se bem familiar na minha vida. Muitas pessoas iam embora, e os que ficavam, esperavam que eu também ficasse. Ou para ser mais exato, me delegavam essa função. Lembro-me de duas pessoas, que, de tão vivas que eram obrigadas a ser, morreram pra mim. Mas não mais! Agora são infinitas em todo e qualquer cair da tarde... eu as vejo todos os dias. Se é que ainda me é permitido separar o dia da noite.

Gostaria muito que a vida se aflorasse em meu peito, afim de que me dispusesse de força para interromper essas palavras. Sim. Eu possuía essa força. Mas de que adiantaria agora? Talvez essa força serviria para que minha atirada fosse ainda mais impactante. E a queda ainda maior. Talvez a força não possua mais valia nesse momento. Sinceramente, preferiria me manter firme a me manter forte. Não sei como foi. A vida se foi, e isso é tudo. A vida caminhou de encontro ao sentido contrario de si mesma. E isso foi tudo. Acho que sobraram palavras perdidas em algum fragmento de sonho esquecido.

Não há dúvida. O lento desfile de um dia de chuva se formou em retinas transeuntes. É curioso o fato. Para alguns; desconhecido, assustador...  Mas quis senti-lo. Na verdade, senti. Se debatendo entre minhas entranhas. As possibilidades caminhavam lotadas de olhares.Talvez um ultimo sentimento. E qual foi o ultimo pensamento? A última imagem? Assim como todos os outros transcorridos, foi um espetáculo? Uma cerimônia? Consegui distinguir claramente a sensação. Foi ansiedade. E não medo. Não desperdicei a chance que tive e que muitos almejam obter. O que ocorreu, foi que essa chance me foi roubada. E isso não me incomodou. Fui senhor apenas de minhas palavras e meus atos. Não coube a mim, ser responsabilizado pelas ações alheias. Mesmo que estas interferissem diretamente em mim. Embora pessoas possam ter pensado que todo ser humano é responsável por tudo aquilo que ele mesmo cativa, saibam que não procurei isso. Pois talvez, teria encontrado. Eu arrisquei. Vim aqui para jogar e não para assistir do camarote. Escolhi a vida. Mesmo que, como é de praxe, sabendo que tudo nasce do seu contrário. Arrisquei e perdi. (Ganhei) O que dirão de mim, não é mais minha função sabê-lo.

Não anseio mais nada. Bem como já não ansiava nos últimos sacrifícios, que separavam os dias anteriores, deste momento. O que me incomodou, foi o fato de ter deixado feridas na vida das pessoas. Essas feridas se fizeram em doce lembranças. Deixei rastros em pensamentos. Vontades em certos lábios. E poesia em alguns sonhos. A verdade foi que sempre quis marcar a vida das pessoas. Mas percebi também que isso seria um grande fardo que as pessoas carregariam quando da minha ausência. Me culpei por isso. Talvez fosse menos doloroso, permanecer no anonimato da vida. Assim talvez fosse possível, amenizar o sofrimento causado naqueles que estavam ligados a mim de alguma forma. O livre arbítrio foi totalmente invalidado nesse momento. Livre-arbítrio nunca existiu. E se existiu, foi de forma relativa. Pelo menos eu não consegui permanecer com essa ideia. Uma experiência me mostrou o quanto pessoas se ligavam a outras pessoas, de várias e entrelaçadas formas.

Posso afirmar que vivi. Com todas as letras. Grandes vitórias. Grandes derrotas. Grandes experiências. Grandes amores. Grandes dores.  Mas nada disso me fez diferente. Grandes amores... duvidoso o fato. Será que para viver um grande amor, precisamos, indispensavelmente, de ser correspondido? Se assim o é, digam que nunca conheci o amor. Mas não fui tão egoísta a ponto de amar só as pessoas que me amavam. Do contrário, nunca teria amado. Porque as pessoas que me amavam de verdade, me foram tiradas cedo demais para eu conhecer seus respectivos sentimentos. E saboreá-los. Ou apenas testemunha-los. Mesmo esse sentimento não sendo conjugal. Paterno, materno e fraterno. O que me sobrou desses sentimentos foi somente o roubo do restante. E a sensação de perda. O que não esperavam é que eu fiz de minhas perdas, dores. Dessas dores, fortaleza. Fui induzido a ser forte. Como havia dito, preferiria ter me mantido firme a permanecer forte.

Já as grandes experiências não me diferenciaram dos demais. Aprendi muito. Conheci as diversas formas do ser. E também do não ser. Mas tudo isso não me valeu para me isentar do inebriante momento de ausência. E muito menos me tornou melhor que outrem. Aprendi uma coisa. De nada vale ficar acumulando experiências. Experiência é prática imediata. Precisamos colocá-las em prática assim que adquiridas. Penso que durante toda a vida carregamos muitos pesares. Não precisamos carregar mais esse fardo. O das nossas experiências não praticadas. Por isso mesmo gastei tudo. Tudo que aprendi foi consumido. Por lá mesmo. Não estoquei nenhum aprendizado em alguma contenda da minha mente.

Não direi que fui uma pessoa letrada. Acadêmica. Pois os momentos de verdadeiros aprendizados foram regados a álcool e a sonhos. Verdadeiros banquetes. Dividi experiências cruas nesses banquetes. Coletivização de problemas individuais. Abri mão da imagem de um bom garoto que aprende tudo na escola e com os idosos para poder reverenciar a dor e aprender com essa última. Professora eficaz. Seu método de ensino é a realidade. Suas ferramentas a verdade, a angústia, o prazer. Mas esse curso tem um alto preço. É que talvez você nunca mais pare de aprender. E permaneça o resto da sua vida fazendo dela existência, e percebendo que não há ofensa em um mundo de dor. Esse foi o meu caso. Existi para poder viver o quanto foi necessário. Enquanto eu buscava alguma coisa minha vida teve sentido. É nesse ponto que vivi com todas as letras. A busca da vingança, que talvez seja melhor traduzida como justiça. A busca de amor. A busca da morte. A busca de felicidade. A busca de encontrar algo que não se tem. Porém, quando percebi que o fim dessa busca - o encontro - não me despertava mais curiosidade, passei a existir. Pois comecei a viver sem sentido. Sem sentido pré-definido. O sentido era o qual eu estava nele, e apto a mudar bruscamente para outro, mesmo que contrário o fosse. Percebi a amplidão da vida. Na própria existência. Não havia mais um único sentido a seguir. E muito menos a restrição única a esse mesmo.

Tudo tinha que ser mais sempre... Sempre havia um além pra eu chegar. E um aqui para eu testemunhar. Nunca me contentei em pormenores. Agradava-me o fato de conhecer as coisas a fundo. Não havia exagero mais belo que o excesso! O suficiente nunca me foi o bastante. E o nada ainda era pouco. Até mesmo o nada. Queria ir mais fundo ao nada. E conhecer a negação, trazida nessa palavra, de todas as formas possíveis. E isso não me traz arrependimento sequer. Talvez isso não tenha me acrescentado nada. E não posso afirmar que me tirou algo. Tudo aconteceu como tinha que acontecer. É o ciclo. Não podemos fugir. Nascemos, crescemos, perdemos e ganhamos, reproduzimos e morremos. Tudo bem que eu escondi uma parte desse ciclo. Ou melhor: me escondi de uma parte desse ciclo. Mas agora... digo adeus e até breve aos meus filhos que nunca nasceram. Pois nos encontraremos já. Enfim. Ultimas palavras. Já é tarde. Fora!

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